Para onde o ENEM me leva: a universidade pública que abre portas
- 24 de set.
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Atualizado: 22 de out.

Lembro-me com uma clareza quase palpável da ansiedade que antecedia o resultado do ENEM. Aquele misto de medo e esperança que nos roubava o sono e nos fazia atualizar a página do Sisu de minuto em minuto. Era mais do que uma nota; era a materialização de anos de estudo, o sonho (muitas vezes silencioso) dos nossos pais, a promessa de um futuro que, até então, parecia distante, quase etéreo. Olhando para trás, vejo que aquela angústia era, na verdade, o prenúncio de uma das transformações mais profundas da minha vida. Em um mundo que tantas vezes nos empurra para o cinismo, quero hoje partilhar com vocês a minha convicção, forjada na experiência, de que apostar na universidade pública brasileira é o ato mais revolucionário e esperançoso que podemos fazer por nós mesmos e pelo nosso país.
A Travessia: Para onde o ENEM me leva ?
Antes de pisar no campus, existe um rito de passagem coletivo que une milhões de jovens brasileiros. O ENEM. É curioso como uma prova consegue carregar tanto simbolismo. Para muitos, ela é a primeira grande batalha travada de forma consciente, a primeira vez que o futuro parece depender unicamente do nosso esforço. Lembro das salas de cursinho cheias, dos professores que eram quase gurus, da solidariedade silenciosa entre concorrentes que, no fundo, só queriam a mesma coisa: uma chance.
Essa prova, com todas as suas complexidades e a pressão que a cerca, representa um pilar democrático fundamental. Ela é a porta de entrada que, ao menos em tese, busca colocar em pé de igualdade o jovem da capital e o do interior, o estudante da escola particular e o da pública. É o sistema dizendo: "Seu conhecimento e sua dedicação importam". E quando aquele "aprovado" finalmente ilumina a tela, e a resposta para a questão: "Para onde o ENEM me leva?" é respondida, a sensação não é apenas de alívio, mas de pertencimento. Você não ganhou na loteria; você conquistou seu lugar. É um momento que redefine nossa autopercepção, a primeira prova de que somos capazes de feitos grandiosos. É a humanidade em sua essência: a superação através do esforço do intelecto.
Um Universo em Expansão: O Choque do Primeiro Período
Nada te prepara para o impacto dos primeiros meses na universidade. Sair de uma estrutura escolar rígida e mergulhar em um oceano de autonomia e conhecimento é avassalador. Lembro-me de caminhar pelo campus, olhando os prédios dos mais diversos institutos – Letras, Física, Oceanografia, Artes Cênicas – e sentir-me como um explorador em um continente desconhecido. A grade horária, antes imposta, agora era um quebra-cabeça que eu mesmo montava. As leituras não eram mais resumos; eram obras densas, que exigiam debate, reflexão e, muitas vezes, a humildade de admitir que não se sabe tudo.
É nesse momento que a verdadeira educação acontece. Ela transcende o conteúdo técnico da sua área. A universidade pública te ensina a pensar. Você aprende a questionar, a duvidar das certezas, a construir um argumento com base em evidências, a defender suas ideias com paixão e a ouvir com respeito quem discorda de você. Aquele problema de cálculo que parecia impossível não era apenas sobre números; era sobre resiliência, sobre encontrar novos caminhos quando o primeiro falha. A análise de um texto complexo de filosofia não era apenas sobre entender o que um autor disse há séculos; era sobre desenvolver empatia e compreender a condição humana. São essas habilidades, forjadas no dia a dia acadêmico, que nos preparam não para uma profissão, mas para a vida e seus desafios imprevisíveis.
Mais que Colegas, uma Família Escolhida: A Força da Comunidade
Se a liberdade intelectual é um dos pilares da universidade, o outro é, sem dúvida, a comunidade. A solidão inicial do "calouro perdido" rapidamente dá lugar a um sentimento de pertencimento que eu jamais havia experimentado. A universidade é um lugar de encontro de almas. É ali, nos grupos de estudo que varam a madrugada, na fila do bandejão, nos debates acalorados do centro acadêmico ou na organização de uma festa, que você encontra sua tribo. Pessoas de todos os cantos do Brasil, com sotaques, vivências e visões de mundo completamente diferentes das suas, mas que compartilham a mesma fome de conhecimento e a mesma vontade de mudar o mundo.
Essa rede de apoio é fundamental. É o amigo que te explica aquela matéria que você não entendeu, a veterana que te empresta os livros, o professor que te incentiva a aplicar para uma bolsa de iniciação científica. É um ecossistema de colaboração que nos ensina, na prática, que ninguém cresce sozinho. As amizades que nascem ali são forjadas em um período de intensa transformação pessoal e intelectual, criando laços que, garanto, duram para sempre. Essa comunidade é a prova viva de que, apesar de nossas diferenças, somos capazes de construir juntos, de nos apoiar e de celebrar as conquistas uns dos outros. É um microcosmo de uma sociedade ideal, baseada no respeito mútuo e na inteligência coletiva.
Onde o Futuro Acontece: A Ciência como Farol
Muitas vezes, consumidos por um noticiário que valoriza o efêmero, esquecemos de celebrar os verdadeiros heróis nacionais. E uma parcela enorme deles está dentro das nossas universidades públicas. É preciso dizer com todas as letras: mais de 95% da ciência brasileira, aquela que salva vidas, que impulsiona nossa economia e que busca soluções para os maiores dilemas da humanidade, nasce e cresce nos corredores e laboratórios dessas instituições.
Quando vemos a notícia de que a UFMG desenvolveu a Calixcoca (1), a primeira vacina do mundo contra a dependência de cocaína e crack, isso não é apenas uma manchete, é o resultado de décadas de pesquisa, de investimento público, de noites em claro sob os olhos de estudantes (cientistas) que acreditaram no "impossível", é a esperança para milhões de famílias. Quando um medicamento inovador como o Vonau Flash (2), criado na USP, facilita a vida de pacientes em tratamento quimioterápico, isso é a ciência brasileira cumprindo seu papel social. Fazer parte desse ambiente é sentir um orgulho profundo. É saber que o seu esforço, mesmo que indireto, como aluno de um curso de Humanas que participa de um debate que afia a mente de um futuro cientista, contribui para essa engrenagem poderosa. A universidade é a prova de que somos uma nação com uma capacidade intelectual extraordinária, capaz de liderar a vanguarda do conhecimento mundial.
A Vida Além do Diploma: A Riqueza da Universalidade
A grande beleza da universidade pública é que ela te permite ser múltiplo. A formação é integral, humana. Lembro-me, como estudante de Belas Artes, de me inscrever e participar de um grupo de estudos sobre engenharia mecânica, proposto por um professor em sua pesquisa sobre engenharia criativa (3). Tinham os colegas da Engenharia que tocavam na orquestra da universidade e amigos da Medicina que faziam parte do time de rugby.
Essa é a universalidade na prática. A universidade entende que um bom engenheiro também se beneficia da sensibilidade da arte, que um médico se torna mais humano ao compreender outras culturas e que um advogado se aprimora ao aprender os fundamentos da economia. Você tem acesso a cinemas, teatros, museus, complexos esportivos e uma gama de cursos de extensão, muitas vezes gratuitos, que te permitem explorar paixões e desenvolver talentos que você nem sabia que possuía. Essa experiência holística não apenas enriquece o currículo; ela enriquece a alma. Ela nos transforma em cidadãos mais cultos, mais curiosos e mais conectados com a complexidade do mundo.
Ao final dessa jornada, o diploma é quase uma consequência. O que realmente levamos é a transformação interna. Entramos jovens, cheios de sonhos e incertezas. Saímos adultos, com a mente expandida, com uma capacidade crítica afiada, com uma rede de afetos para a vida toda e com a certeza de que somos parte de algo muito maior. Em um tempo que nos convida ao individualismo, a universidade pública nos lembra do poder do coletivo, em um ato diário de fé na humanidade, no conhecimento e na incrível capacidade de, juntos, construirmos um futuro mais brilhante.
Se você está nessa encruzilhada, sentindo a mesma ansiedade que eu senti um dia, meu conselho é um só: mergulhe de cabeça. A travessia vale cada segundo.
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